Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Abram o olho, as meninas sabem do que estão falando
O SESC abriu inscrições para o
I Ciclo de Fotografia: Teoria, Técnica e Poética. Dividido em cinco módulos independentes, entre março e julho, o Ciclo será realizado sob auxílio e orientação da pesquisadora em poéticas fotográficas Ana Carolina Lima Santos e da fotógrafa Renata Voss.
Pra início de conversa, as ministrantes recebem os interessados amanhã à noite, a partir das 18 horas, num Café Cultural abrigado pelo auditório do Sesc Centro. Como adianta Ana Carolina, o curso surgiu da percepção de uma carência de iniciativas dessa natureza.
“O espaço para se pensar e fazer fotografia em nossa cidade tem melhorado significativamente nos últimos anos. O trabalho do Trotamundos Coletivo (o Conversando Fotografia, em especial) e do Snapic Fotografias (com o projeto de financiamento colaborativo para o seu primeiro fotolivro, o Música para ver) bem como o crescente número de exposições fotográficas são provas disso. Este projeto de arte-educação é a contribuição que eu e a Renata podemos dar aos sergipanos”, diz a pesquisadora.
Os interessados podem fazer a pré-inscrição através do telefone (79) 3216-2727 ou matricular-se na Central de Atendimento do SESC (rua Dom José Thomaz, 235, São José), desde o último 12 de março. A entrevista reproduzida abaixo é prova de que as meninas estão mais do que habilitadas para a tarefa a que estão se propondo.
Jornal do Dia – Carol, você sabe que eu morro de inveja do seu trampo, mas explique melhor: o que faz uma pesquisadora em poéticas visuais? Você entrou em contato com o trabalho de Renata durante o expediente? Como se deu essa aproximação?
Ana Carolina – É difícil responder essa primeira pergunta, pois tenho problema em me definir como qualquer coisa que não seja ‘professora’. No fundo, meu trabalho caminha ou se materializa sempre no que levo para a sala de aula, no que consigo oferecer aos alunos. Mas, por trás desse ‘produto pronto’ que é uma palestra, um curso de capacitação ou uma disciplina na universidade, existe um processo mais amplo. O meu começa na formação e na pesquisa científica. O mestrado e o doutorado têm sido meus espaços para isso; primeiro, na área do fotojornalismo e, mais recentemente, do fotodocumentário. Ao passar pelo trabalho de formação, nas leituras específicas da área, alguns pontos foram me atraindo e aos poucos fui os transformando em problemas de pesquisa, a partir dos quais tento desenvolver fundamentações teórico-empíricas que gerem novos conhecimentos sobre o fazer fotográfico. É aí que entra a poética visual: eu me debruço sobre as fotografias para entender a construção das imagens enquanto obra, fruto de uma criação artístico-expressiva em que o fotógrafo é capaz de dar formas às suas visões de mundo – ainda que, em um primeiro momento, elas nos pareçam apenas meros registros do mundo ou, no sentido oposto, apenas delírios sem pé nem cabeça ou sem qualquer relação com mundo. Simplificando: o que faço é enfiar a cara nos livros e nas imagens fotográficas para tentar levar a comprensão de como se dá a produção e a fruição das fotografias para além do senso comum. É isso, ao meu ver, que me qualifica para oferecer aos alunos um pensamento maduro acerca do universo fotográfico. Só que minha contribuição para eles não é de ordem mais prática (ou técnica), não dou aulas do tipo ‘pegar uma câmera, configurar no modo x ou y e clicar’, porque, no fundo, eu sou apenas um teórica da fotografia, eu não fotografo. Embora eu saiba da importância da técnica e de aulas dessa natureza, acredito que a fotografica não pode se resumir a isso; motivo pelo qual tento promover reflexões acerca das implicações que as práticas fotográficas então realizadas trazem para a nossa relação com o mundo, seja o mundo mediado pela imagem ou o mundo fotográfico propriamente dito. O contato com a Renata surgiu no meio de todo esse processo. Ela, além de pesquisadora, é fotógrafa e desenvolve um trabalho autoral que me encanta demais. Acho que o trabalho dela reflete inquietações muito próximas das questões conceituais que levanto, sobretudo no que diz respeito ao papel e às possibilidades da fotografia na contemporaneidade. Das primeiras conversas que tivemos, a idéia do Ciclo foi surgindo naturalmente.
JD – Em língua de gente, o que significa “alinhar a mente, o olho e o coração”? Em que medida a compreensão da síntese realizada pelo fotógrafo Henri Cartier-Bresson, mencionado por vocês no material de divulgação do Ciclo, pode auxiliar um leigo na educação do próprio olhar?
Renata Voss – Alinhar esses três elementos significa pensar a fotografia além da técnica, significa envolver no momento do ato fotográfico (e mesmo antes ou depois dele) o sensível e algum pensamento. A fotografia é um meio técnico e muita gente se detém em entender somente a técnica. Essa não é a nossa proposta. A intenção é pensar naquilo que a fotografia pode provocar, pode trazer para as pessoas. Acreditamos que com essa proposta do Ciclo podemos fazer pensar em e através de imagens. Imagens também têm textos e histórias e essa educação do olhar além da imagem é, do nosso ponto de vista, muito importante. Por causa disso, o Ciclo foi estruturado em cinco módulos que têm sua razão de ser no sentido da ordem em que acontecerão: alternamos módulos teóricos e técnicos, com a questão da poética, do modo de se fazer fotografia, prepassando todo o ciclo. Tivemos uma preocupação de continuidade nessa formação, então o primeiro módulo (Prática Fotográfica) dará a base mais técnica da fotografia, do funcionamento da câmera, tipos de equipamento, que é importante conhecer quando se quer estudar fotografia. O segundo módulo é o Panorama histórico da fotografia, que irá traçar os principais movimentos da fotografia, bem como as suas contribuições e questões trazidas para discussão sobre a própria fotografia; depois, temos o módulo de Projeto Fotográfico Autoral, em que os alunos irão desenvolver, apresentar e refletir sobre a sua própria produção; no quarto módulo, Teoria e crítica da imagem fotográfica, serão apresentadas algumas teorias da fotografia e, no último módulo, A fotografia em suas múltiplas linguagens, vamos discutir as obras de alguns fotógrafos que de alguma forma têm feito trabalhos que desafiem o universo fotográfico. Assim, com essa sequência pretendemos ampliar e estimular a discussão sobre fotografia.
JD – Vocês podem discordar, mas eu tenho a impressão que vivemos hoje sob uma espécie de hegemonia da imagem. Ao mesmo tempo em que caminhamos a passos largos em direção ao grunhido – como afirmava Saramago, externado sua indisposição com as plataformas de comunicação contemporâneas – recorremos de maneira assustadora a símbolos padronizados, que condensam significados completos num instantâneo. Isso poderia ser tomado como um sinal de maturidade visual, ou tal padronização seria fruto de uma espécie de engessamento da percepção coletiva? Em outras palavras, estamos mais sensíveis à imagem enquanto possibilidade de comunicação?
Carol – Vou ser petulante para discordar não de você, mas do Saramago. Acho a afirmação dele muito conservadora na medida em que desconsidera que as formas de comunicação estão apenas mudando. Se elas se reduzem em termos de caracteres, elas se alargam por outras vias. Creio que a imagem pode ser uma delas. ‘Poder’ não significa que ela já seja ou mesmo que vá ser. Por isso também vejo a sua idéia de ‘símbolos padronizados’ e de ‘engessamento da percepção coletiva’ com alguma cautela. Não vou dizer que isso seja uma falácia, mas que é uma meia verdade ou uma verdade parcial. Guy Debord e Jean Baudrillard, dois pensadores da imagem já falecidos, levaram essa idéia tão a sério que decretaram que a hegemonia da imagem a faz substituir a própria realidade e falavam de uma sociedade dominada pelo espetáculo e pelo simulacro. Só que nesses termos totalizadores, eles desconsideravam o fato de que, no meio do ‘espetáculo’ e do ‘simulacro’, também é possível surgir práticas que conseguem desestabilizar a produção e a percepção das imagens. Vou dar um exemplo da moda: Vik Muniz, artista que fez a abertura da novela global Passione, consegue trazer nela imagens que são tanto espetacularizantes quanto desestabilizadoras, porque pode-se olhar para elas e ver apenas uma representação figurativa de diversos personagens ou perceber que elas propõem um desafio à percepção que joga com a composição de imagens a partir da imagem de outra coisa, esta resignificando aquelas.
JD – Um fotógrafo também pode ser considerado um autor, um artista? Quase apanho de Victor Balde, outro dia, ao reivindicar um autógrafo no meu exemplar do livro que a Snapic deve lançar agora em abril.
Renata – Acho que isso envolve muitas relações, desde o reconhecimento institucional ao reconhecimento pelo outro como tal. Um fotógrafo constrói um trabalho que traz muito do seu modo de ver o mundo e acho que é essa identidade da obra que permite conceber o fotógrafo como um autor. E ser um autor ou um artista traz um bocado de responsabilidade, no sentido de se posicionar como tal. Para mim, ser fotógrafo não anula ser artista, mas são, digamos, localizações no mundo – que determina, inclusive, como você se identifica mesmo: fotógrafo, artista, artista visual. Os nomes podem ser muitos, mas o que vale no fim das contas é a densidade do trabalho, a sua verdade! Sei que para muitos fotógrafos ser chamado de artista é algo engraçado, porque quem é que determina isso? Sou eu que me coloco como artista? É o outro que me chama de artista? É o fato de levar o trabalho para uma galeria? E é justamente nesse ponto, ao envolver questões institucionais, que entra também o histórico da fotografia, de ter demorado a ser aceita como arte dentro dessa estrutura institucional em que as outras linguagens clássicas já tinham cadeira cativa.
JD – Em termos pedagógicos, como a “abertura do raio de visão”, proposta por vocês, pode enriquecer o cotidiano das pessoas?
Renata – A abertura do raio de visão só se dá, acreditamos, trabalhando com o sensível. Nós temos imagens o tempo todo ao nosso redor, das mais simples às mais complexas. Acreditamos que com o Ciclo de Fotografia podemos trabalhar o entendimento das pessoas para além da superficialidade da imagem, seja para aguçar as percepções sobre o trabalho do outro ou até mesmo do seu próprio. É claro que cada um lança um olhar diferente sobre uma mesma imagem, visto que a bagagem cultural e a experiência de vida é sempre individual. No Ciclo, apostamos justamente nessa troca de olhares – do nosso olhar, inclusive. E a partir daí, acreditamos que isso pode se reverberar no cotidiano, desde o ‘olhar imagens’ (fotografias, ilustrações, filmes) até perceber as sutilezas das coisas no dia a dia. A abertura de visão tem a ver com isso: às coisas que vemos e que não vemos no cotidiano.
JD – Pra terminar tirando uma onda de sabidinho: a poesia não seria território do verbo?
Carol – É território do discursivo. A fotografia também demorou bastante para ser entendida e aceita como discurso, como texto (de natureza visual), pelo mesmo motivo que demorou a ser aceita como arte, ou seja, porque ser assim reconhecida abalava os domínios institucionais já bem estabelecidos – da pintura, em um caso, e da literatura, no outro. Os movimentos de vanguardas, na década de 1920, abriram caminho para que as diferentes linguagens fossem se aproximando ou até mesmo se hibridizando. Hoje é um pouco redutor falar em fronteiras delimitadas. Preferimos pensar que todas as formas de expressão se entrelaçam de alguma maneira. A fotografia, mesmo quando é ‘pura’, tem um tanto de desenho, de pintura, de escultura, de perfomance, de literatura e de poesia – por que não? Não estamos falando de dependência entre as linguagens, mas de traduções, apropriações, associações, cruzamentos e filtragens.